Nesta Edição Do JL/Educação

O texto foi escrito no dia 31 de Janeiro, mas parecia antecipar o recrudescer das intimidações “legalistas” sobre os protestos dos professores. Era para só o publicar amanhã, mas atendendo a tudo o que se vai sabendo hoje sobre os “serviços mínimos” implementados de forma algo casuística e anárquica, com medo das “consequências” por parte dos órgãos de gestão, vai mesmo hoje. É um texto que entra por uma linha de argumentação que poderá parecer desconfortável a algumas sensibilidades, mas que tem sustentação histórica, não sendo mera “opinião”.

A ilegalidade do que é justo

Os últimos meses assistiram a uma nova vaga de protestos dos professores, com uma intensidade inesperada para muitos, incluindo boa parte dos protagonistas locais ou centrais. E especialmente inesperada para quem, na área da decisão política e respectivos gabinetes, se viu perante uma vaga crescente de revolta e manifestações massivas nas ruas de Lisboa, resultante de anos e anos de frustrações e enganos, sofridos entre o periódico descontentamento e uma desanimada paciência por tempos melhores. Que nunca chegaram, apesar de prometidos. Reversões anunciadas que nunca se concretizaram ao mesmo tempo que a teoria do “mais com menos” dos tempos da troika se renovava, com novas roupagens, com o pretexto da pandemia e consequente argumento da necessidade de “recuperar aprendizagens”.

A pressão, contínua, abusiva, crescentemente intolerável, acabou por resultar numa explosão por todo o país, com uma enorme carga emocional que encontrou uma quantidade imensa de energia, onde e quando se pensava que ela estava esgotada. E embora fosse buscar inspiração a revoltas passadas, ganhou contornos inesperados para quem estava habituado, para usar as palavras do ministro da Educação, a formas de luta ”previsíveis”, “típicas” ou mesmo “proporcionais”. Assim como também apanhou pouco preparadas algumas organizações sindicais, que na avaliação do líder da maior federação sindical, se assumem como parte do “sistema” e criticam quem ousa fugir à contestação formatada em muitos anos de coreografia negocial, sem quaisquer resultados palpáveis nas últimas duas décadas, de contante perda de direitos laborais e autonomia profissional.

Na confluência dos discursos de todos os que se sentiram ameaçados por esta forma quase inorgânica, com um enquadramento organizacional mínimo, de (auto) mobilização dos docentes, surgiu um elemento de denúncia em forma de ameaça, que foi o da potencial “ilegalidade” das greves em decurso desde Dezembro de 2022, com convocatória do sindicato S.TO.P. E foi anunciado o pedido de pareceres a “centros de competências” jurídicas do próprio Estado e à Procuradoria Geral da República como se protestos perfeitamente ordeiros, embora com uma configuração “atípica”, constituíssem uma ameaça à ordem social, quando tudo não passa de um forte confronto político. E quem, em tantas situações, condenou a “judicialização” da política, optou por “proto-judicializar” (porque pareceres jurídicos há muitos, mas nenhum se constitui como lei ou a substitui) um conflito político-laboral. E ainda tivemos direito a clamores de “populismo, populismo!” por parte de quem usou todos os truques – da mobilização de algumas associações de pais a conferências de imprensa anteriores a reuniões negociais, não esquecendo idas sem contraditório à televisão pública – para arregimentar a opinião pública e a lançar contra a classe docente. E nem sequer faltou quem se adentrasse pelos caminhos da própria “moralidade dos meios usados”.

Não me interessa alinhar múltiplos exemplos de declarações de escasso sentido e nula substância ou sequer demonstrar a falácia da suposta “ilegalidade” das greves ou de alegados “fundos de greve”, divulgados em alguma imprensa de forma cirúrgica e adequadamente vaga. Sendo em grande medida matéria de interpretação, mesmo no plano jurídico, é difícil chegar a um acordo sobre algo na base do “parece que” ou do “existe uma intenção” ou ainda, como se pode ler em acórdão do Colégio Arbitral que decretou serviços mínimos para uma greve específica (porque outras parecem ser virtuosas na sua “previsibilidade”), afirmando-se que ela porá “em risco, de forma danosa e tendencialmente irreversível” ou que causará dano “potencialmente irreparável”. Em matéria de factos, tamanhos advérbios são mera expressão especulativa de uma subjectividade de escassa fundamentação factual.

Interessa-me antes entrar por outra linha de argumentação, que é o da natureza de maioria das lutas por direitos sociais e laborais ao longo da História ter sido o de combate às normas então estabelecidas como legais num determinado contexto. E nem sequer entrarei pelo campo de, por regra, as revoluções políticas e sociais terem sido, em seu tempo, “ilegais” perante os poderes instituídos.

Por isso o que está em causa é se aquilo por que se luta é justo ou não. Se é uma luta por direitos que merecem ser defendidos, conquistados ou preservados, exista ou não um decreto, portaria ou despacho que diga o contrário ou parecer que possa ser produzido a pedido para servir para legitimar, de modo instrumental, a coerção de quem se manifesta por esses direitos, recorrendo a meios inesperados, mas eficazes, na sua acção.

Será que existiram muitas lutas por direitos fundamentais que não tenham sido, em dado momento, acusadas de ilegalidade? Sócrates, de alguma forma o fundador do pensamento filosófico ocidental, há quase 2500 anos foi acusado de corromper a juventude, de ir contra as leis da democrática Atenas e recusar a culpabilidade de um crime que não considerava ter cometido.

A escravatura não foi tanto tempo legal, e perseguidos, condenados e mesmo executados, muitos dos que a combateram? O mesmo se aplicando à discriminação racial, que mesmo na mais velha democracia do mundo moderno, se manteve dentro da legalidade até à segunda metade do século XX. Será necessário recordar que era “legal” enforcar quem ousasse confrontar o que hoje consideramos uma evidente injustiça?

E o que dizer dos direitos das mulheres, incluindo o de votar, negado em regimes que se afirmaram progressistas e defensores da igualdade entre os “cidadãos”? Em quantos regimes democráticos, a inferioridade jurídica da mulher foi uma realidade legal até há poucas décadas? Quantas vezes foram acusadas de “imorais” e de atentarem contra a “ordem pública” aquelas que se manifestaram de forma atípica e imprevisível pelos direitos políticos de mais de metade da Humanidade?

A luta pelo que é justo e agora nos parece óbvio, foi muitas vezes feita contras as leis vigentes, não apenas em regimes ditatoriais, mas de igual modo em sistemas que se apresentaram como formalmente democráticos. A democracia ateniense, que ainda hoje se consegue ensinar no Ensino Básico, apesar da redução das aprendizagens ao mínimo qualificado como “essencial”, era “imperfeita”, porque era esclavagista, imperialista, misógina e xenófoba, tratando como “bárbaros” aqueles que não entendia.

A democracia americana, glorificada como a matriz dos regimes liberais ocidentais, foi fundada por convictos esclavagistas, promotores de uma sociedade patriarcal e censitária, embora se afirmassem como defensores da “igualdade” e “liberdade”. Na sua esteira, as democracias liberais do mundo atlântico, consideravam que o direito de voto deveria ser restrito, assim como os direitos ao protesto dos trabalhadores, sendo ilegais greves ou meras manifestações de rua dos trabalhadores. Entre outros exemplos possíveis de imposição de uma ordem “legal” com pouco de justiça, será que Sacco e Vanzetti foram condenados por um crime de que foram absolvidos postumamente ou por serem operários anarquistas?

A nossa República, apresentada como emancipadora e igualitária, negou o voto, à primeira tentativa, a todas as mulheres, nisso não se distinguindo em nada do regime que substituiu. Ou seja, o voto feminino foi declarado “ilegal” com chancela constitucional. Assim como o direito à greve foi reconhecido para depois ser novamente reprimido.

E à parte da ilegalidade, em quase todos estes casos, somaram-se as acusações de “imoralidade”, de Sócrates às sufragistas, não esquecendo as “classes perigosas” da mitologia burguesa oitocentista, que demonizou o nascente operariado, sempre que ele fugiu ao seu lugar e função na ordem estabelecida.

Por isso, a campanha política e mediática contra o modo como a classe docente repensou as suas formas de luta nos últimos tempos, não passa de uma forma de intimidação, tanto mais vergonhosa quanto atenta contra aqueles que apenas defendem os seus direitos.

“— Ora, meus senhores, aqueles que instruíram as testemunhas indicando-lhes que deviam testemunhar falsamente contra mim e os que se deixaram persuadir por eles devem ter a noção de que cometeram contra eles mesmos um crime grave de impiedade e uma enorme injustiça. Quanto a mim, porque me hei-de sentir agora menos orgulhoso do que antes de ser condenado, já que ninguém me convenceu de ter cometido nenhum dos crimes de que me acusaram?” (Xenofonte, Apologia de Sócrates. Coimbra; 2008, tradução, introdução e notas de Ana Elias Pinheiro, p. 109)

13 opiniões sobre “Nesta Edição Do JL/Educação

  1. É por estas e por outras que é indispensável estudar História e ter pensamento crítico. O mesmo que alguns dirigentes não possuem e, como tal, odeiam quem o tem, atiçando todos os “rottweilers” contra eles.

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  2. O sonho deste Governo ditatorial, neofascista, prepotente, autoritário, repleto de falsos democratas, é só um: que a escola pública desapareça.
    No fundo, até desejariam que a maioria dos professores e professoras tomassem “cicuta”.
    Disse.

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  3. Paulo, muito obrigado por nos pores a pensar.
    E passa-me pela cachimónia que nunca é demais lembrar que este Partido Socialista se assume absurdamente e aristocráticamente como um orgulhoso descendente do Partido Republicano. De facto, herdou-lhe muito poucas virtudes e todos os defeitos.
    Sem o brilho de Soares e de Zenha, ao pêésse só lhe resta o descaramento e arrogancia que os citados disfarçavam com algum mundo e com alguma verve.
    O nosso país está calhorda, estes dirigentes são calhordas e, por este andar, não se vai a lado nenhum.
    Qualquer gestor da coisa pública, qualquer responsável civilizado, qualquer cidadão disponível para uma discussão com alguma plausibilidade já teria respondido-ou, pelo menos, tentado responder- a 5 questões:
    Que Ensino queremos?
    Que estrutura deve ter?
    Que professores devemos manter e recrutar?
    Quanto é que estamos dispostos a gastar?
    De quanto tempo dispomos para colocar no terreno e operacionalizar a estrutura que idealizamos.

    Posto isto; perguntar-se-ia:
    Há condições para realizar neste pobre país um projecto da importancia que merece um bom sistema de ensino?

    Se sim, ótimo, se não, reformule-se e assuma-se que não há dinheiro para fazer o que deve ser feito e assumam-se responsavelmente as consequências políticas dessa impossibilidade.

    Para isso seria preciso, como bem disse o Augusto SS no discurso da tomada de posse, que houvesse a capacidade de usar pontos de interrogação e de fazer perguntas.
    (Perguntas para lá da hora do almoço, ou do próximo jogo de futebol, bem entendido…).

    Gostemos ou não, (eu não gosto…) temos de reconhecer que a última vez que alguém tentou fazer algo parecido com o escrito acima foi no consulado de Marcelo Caetano.

    Falamos, como já toda a gente adivinhou, de Veiga Simão. Esse homem, pretendeu criar um Sistema Educativo á séria.

    As suas 29 bases abarcavam os ciclos de ensino, uma estratégia de implementação, a calendarização das medidas a tomar, os objetivos do sistema…

    http://dre.pt/dre/detalhe/lei/5-1973-421823

    O que fez o PS com este homem?
    – Matou-o.

    Fê-lo militante (ou freguês) do pêésse.

    Esfrangalhou o seu trabalho e prostituiu o conceito subjacente às ‘bases’ de uma Lei.

    Descaracterizou completamente o Sistema de Ensino e transformou numa marioneta de vaidades pessoais de figuras bacocas com assento na 24 de julho.

    Integrou-o como ministro e achincalhou-o (lembremo-nos do escândalo da publicação de uma lista com os espiões portugueses enquanto o Homem estava na pasta da Defesa Nacional).

    Por fim, colocou como ministro rapazes como este:

    E então é o que temos.
    Resta-me acalentar a suspeita que a manutenção da Lei Nº 5/73 durante uns 15 anos faria de nós, como povo, uma gente mais civilizada, culta e exigente.

    Não acreditam? (Outro ponto de interrogação! Estou a ficar espetacular…)
    Ei-la:

    http://dre.pt/dre/detalhe/lei/5-1973-421823

    Um abraço a todos os colegas que tiveram a pachorra de chegar até aqui.
    Um especial agradecimento ao Paulo por aturar o meu e os nossos desbafos.

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  4. Agora que estamos em modo Jornadas Mundiais da Juventude será cada vez mais difícil a colocação de docentes na grande Lisboa. Talvez fosse uma oportunidade, digo eu, para que de uma vez por todas alguém se chegue à frente e garanta alojamento digno e a preço comportável aos professores, Igreja, Câmaras Municipais, Privados, o que seja, que esta coisa deixe um bom príncipio e que alguém aproveite a ideia de forma mais ou menos oportunista. O Medina diz que o país não tem só professores, pois não, mas seria boa ideia começar a tratar bem os que restam. Chama-se a isto ter prioridades e começar por algum lado. Há medidas baratas que têm muito impacto e não estou a falar de fazer queixas no Ministério Público.

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  5. É por estas e por outras que ninguém do governo quer debater com o Paulo frente a uma câmara de televisão, não vá expor-se ao ridículo e denunciar a sua ignorância ou o o logro do que pretende impingir. E para diminuir o risco de haver quem pense e tenha o conhecimento suficiente para argumentar com fundamentos válidos, esvazia-se a Escola desse conhecimento, que é perigoso e ameaça os medíocres.
    Obrigada, Paulo!

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  6. A pertença ideia de que o que foge ao estabelecido é ilegal e por isso deve ser penalizado e denunciado na praça pública, torna uma sociedade mais pobre e perto do autoritarismo.
    A luta dos professores não é mais do que um grito de revolta perante esta novem negra que se prepara para desabar sobre nós como forma de decapitar o livre pensamento.

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