O Texto No JL/Educação Deste Mês

Em versão pré-formatação ortográfica.

Ensinei a minha petiza a andar de bicicleta, pelo menos daquelas com rodinhas, teria ela um punhado de anos, talvez menos. O meu pai ensinara-me quando eu já andaria na Primária, após comprar-me uma bicicleta com a inesquecível marca Romeo, que muito gozo deu aos meus colegas. Por acaso a marca ainda existe e com uma linha vintage na qual encontrei um modelo parecido ao meu de inícios dos anos 70. O meu pai deve ter aprendido a andar numa pasteleira, com o irmão mais velho, porque não estou a ver o meu avô a preocupar-se com essas coisas, que ele era mais anarquismos e peças de teatro por encenar.

Agora, num tempo em que as ciclovias nascem que nem cogumelos, lado a lado com estradas, caminhos, passeios ou arruamentos, o ministério da Educação decidiu que os alunos do 2.º ciclo devem aprender a andar de bicicleta nas escolas. De acordo com a notícia do jornal escolhido para divulgar a novidade “Ciclismo vai ser aposta do Desporto Escolar”, acrescentando-se que “ensinar a andar de bicicleta, de forma competitiva ou como um meio de transporte sustentável é uma das apostas do programa Desporto Escolar (DE) até 2025” (Jornal de Notícias, 13 de Agosto de 2021). Quase me espantei por não passar a fazer parte do currículo nuclear deste ciclo de escolaridade, pois as escolas tornaram-se uma espécie de família primeira para os alunos, onde parece ser necessário ensinar-lhes de tudo um pouco, poupando as famílias a essas tarefas que em tempos serviam para aprofundar as ligações pais-filhos e faziam parte do que agora se designa, mas se pratica pouco, como quality time.

Uma ou duas horas antes de começar a escrever este texto, em trajecto feito para cumprir uns deveres familiares, onde não existem transportes públicos, cruzei-me com uma dezena de ciclistas com equipamento completo, quase a parecer que estava perante um grupo de fuga numa qualquer volta à Parvalheira, tão boa a qualidade aparente das roupagens coleantes e velocípedes rebrilhantes ao sol da manhã. O caminho em causa é um dos principais para uma unidade industrial com milhares de trabalhadores, mas raramente vejo alguém a fazê-lo no sentido do local de trabalho. Um pouco mais adiante, um par de quilómetros quiçá, passei por uma ciclovia cuidadosamente desenhada e implementada pela autarquia. Passeavam nela alguns caminhantes matinais entre o footing e o jogging, mas zero crianças em bicicleta, acompanhadas por um adulto a ensinar-lhes esta competência essencial, outrora como meio de deslocação, mas agora quase exclusivamente como forma de diversão e convívio. Aliás, ao fim de semana, o ratio entre ciclistas em amena cavaqueira pela estrada nacional fora e pais a acompanhar crianças nas ciclovias é desolador.

A escola que trate disso, é o que parece ser-nos dito sem grande margem para dúvidas. A escola que aprofunde a sua missão de difundir o lifestyle apresentado como saudável, tolerante, inclusivo e moderno aos jovens. Que aprendam o empreendedorismo na disciplina de Cidadania (nem me arrisco a entrar pelas questões de género), que não comam pãezinhos com chouriço ou bebam leites com muito chocolate nos bufetes da escola e que aprendam a andar de bicicleta no recinto escolar para serem cidadãos com um corpo são e poucas despesas para o Serviço Nacional de Saúde. É um desígnio como qualquer outro, mas deixa-me dúvidas quanto a esta “nova” concepção da Escola Pública, a este “novo paradigma” de uma Educação que é transbordante em tudo, menos na parte académica, que se reduziu a “aprendizagens essenciais” para que a mente sã seja uma mente com pouca coisa lá dentro que possa provocar a fermentação de ideias desagradáveis ou problemáticas para o zeitgeist holístico que está na moda em certas tertúlias muito ideologizadas no supérfluo e com escassa coragem para se envolver (a menos que seja em voluntariado caritativo) na resolução dos problemas mais graves que afectam as famílias dos alunos mais carenciados.

Dizem os “modernos” que esta Escola que temos é “velha”, que está “desactualizada”, que não corresponde às “expectativas”, que é “enciclopédica”, que é “aborrecida” e “não cativa os alunos”. Que segue um modelo igual ao de séculos. Quase como alguns dos meus escritos que passeiam entediados sobre estas opiniões, contra as quais argumento de forma recorrente que há instituições que cumprem uma função social com traços de permanência que dificilmente faz sentido mudar. Um hospital, um tribunal, tal como uma escola, mantêm traços comuns desde o início da época Contemporânea por alguma razão. Pode mudar a arquitectura e a gestão de alguns espaços, podem mudar as ferramentas ao dispor de quem lá trabalha, podem mudar as formas de desempenhar certos actos, mas a essência permanece muito semelhante.

No caso da Escola, muito mudou, apesar do que é dito em contrário, desde que fui aluno. E, para além das aparências, muito se transformou na forma de estar nas escolas, nas aulas, de ensinar e de aprender, mesmo se a Escola ainda mantém aquela função primordial de transmitir conhecimentos e competências às novas gerações. E assim se deve manter, a menos que se transforme em definitivo em outra coisa, de espaço recreativo a mera instituição de gestão do tempo das crianças e jovens quando as famílias estão fora de casa, a trabalhar (ou a andar de bicicleta).

Parece-me um erro enorme querer transformar o “velho paradigma” num “novo” em que a Escola se torna o espaço para a transmissão do Efémero, da moda transitória, dos elementos dos estilos de vida mais em voga. As aulas de Sócrates e Platão eram muito diferentes das nossas, bem como as dos mestres medievais nos seus mosteiros, nos degraus de uma catedral ou numa nascente “universidade” (e seria tão interessante perceberem que a etimologia do termo se relaciona com os conceitos de universo e unidade). Mas existiu desde a origem essa função de transmitir o “saber”, entendido como aquilo que era mais importante transmitir entre gerações, aquilo que deveria permanecer como um corpo comum de conhecimentos. E não a transmissão de facetas transitórias da vida quotidiana. Mesmo quando relacionada com aspectos mais técnico-profissionais (como no caso da formação no contexto de uma corporação ou guilda), procurava-se que as aprendizagens recaíssem sobre um corpo de conhecimentos estabelecidos como canónicos.

Claro que esses conhecimentos evoluíram e já não aprendemos que a terra é plana e está no centro do Universo (bem… há quem continue a acreditar nisso) ou que as doenças são o resultado de castigos divinos e que se curam com oferendas (pois… eu sei, ainda há quem acredite pelo menos em parte disso). Nem o ensino se baseia apenas na exposição da autoridade inquestionável do mestre (por muito que existam pessoas que ainda confundem o seu passado com o presente), perante a apatia geral dos alunos. Mas o papel da Escola como instituição que assegura a transmissão do que é considerado o Conhecimento comum da Humanidade, nas suas várias áreas de desenvolvimento, das Artes às Ciências, das Humanidades às Tecnologias, passou a estar sob forte ataque. Parece que uma mente sã é aquela que só precisa estar informada acerca do “essencial”.

Os últimos anos trouxeram-nos uma forma de pensar a Educação (e a Escola) que parece seduzida pelo efémero, pelo epifenómeno, pelo borbulhar superficial, pelo verniz. Os conteúdos das disciplinas apresentadas como “tradicionais” são substituídos por um elenco de “aprendizagens essenciais”, quase a um esqueleto que, em alguns casos, se torna uma espécie de uma má caricatura, desconexa, do que deveria ser um corpo coerente de conhecimentos. O caso da História é, como agora se diz, “paradigmático” da redução ao absurdo das aprendizagens, resultado da combinação da diminuição do tempo semanal disponível para leccionar (de 3 tempos de 50 minutos para apenas 2 de 45 ou 50) o que deveria ser uma evolução panorâmica das sociedades humanas, com a hábil promoção da queixa populista da extensão dos programas. E assim se reduz tudo a uma espécie de “quadros históricos” à moda de um espectáculo de salão do século XVIII, em que a democracia ateniense aparece já perfeita no século V a. C., sem contexto, enquanto o Império Romano nos surge já todo formado, como se não fosse o resultado de um longo processo. Parece que saber mais do que o “essencial” é algo aborrecido, antiquado e, cito sempre o preclaro governante que o afirmou, um saber “enciclopédico” e inútil. Esparta derrotou Atenas.

Uma Educação Mínima para o sucesso, uma Escola cada vez mais centrada no Efémero, prescindindo da sua função original e “essencial”.

14 opiniões sobre “O Texto No JL/Educação Deste Mês

  1. Bravo. Excelente texto!
    Diz de forma clara o que se passa na escola portuguesa de 2021. Realça o desvirtuar da essência da escola, indica a permeabilidade a modas fúteis e, em resumo, percebe-se que quem governa é fraco (de conteúdo ou formação) mas prepotente.
    Assim caminhamos letárgicos para o fim das liberdades e para a formatação de rebanho obediente e acrítico num modelo social onde se alarga o fosso entre quem pode aceder ao conhecimento e quem não pode.

    Gostar

  2. Eu aprendi sozinho. O meu pai não tinha tempo para isso, entre os turnos e o complemento da agricultura. E logo ele que teve como único transporte ao longo da vida precisamente a bicicleta.

    Qualquer dia, até os professores chamam para fazer filhos nas mulheres alheias.

    Tudo isto é patético!

    Gostar

  3. Gostei, é claro. Sobretudo do detalhe de não serem os trabalhadores que vão de bicicleta para a tal unidade industrial. Porque há a chuva, ou o imenso calor, o cansaço e nada disto é lúdico. Em Lisboa e no Porto há as manadas de gente bem que faz ciclismo mas ao fds. É bué andar de bicicleta para o trabalho em lx que é plana, ou mais plana do que o Porto. Por isso, cá para cima, ninguém anda com essas manias. E, é no norte que se encontram os ciclistas que fazem as provas das voltas a Portugal, gente humilde, resiliente como agora se diz. É daqui e muito de Gaia, que saem, os maratonistas, os ciclistas, os da canoagem. Que não se vejam pais, mães a ensinarem os putos a andar de bicicleta é a pura verdade. Porque é porreiro que a escola também disso se encarregue. E aqui já apanho todos os pais: desde os mais operários aos mais CEO. O tempo de lazer é levá-los ao shopping.

    Gostar

  4. O melhor texto que li nos últimos tempos. Não posso com aquela ladainha de “estarmos a ensinar alunos do sec. XXI, com professores do sec. XX e métodos do sec. XIX”.

    Gostar

  5. “estamos a ensinar alunos do século XXI com professores do século XX, métodos do século XIX e governantes de uma estupidez verdadeiramente intemporal”

    Gostar

  6. Subscrevo.
    Hoje, fazem das crianças estúpidas. É de bom tom poupar em “medalhas”, nos joelhos, nas pernas, nos braços, com algumas lágrimas, que na altura eram muitas vezes a pausa para retomar, pois a brincadeira não podia esperar. Hoje, temos muitos queixinhas, que por tudo e por nada ligam aos papás, sobrando-lhes em queixume o que lhes falta em imaginação, resiliência, criatividade, espírito de iniciativa e capacidade de trabalho. Se se pudesse ensinar por telemóvel a andar de bicicleta, não faltariam ciclistas nas ciclovias!
    Haja paciência, e acreditem que é preciso muita, para estes tempos de um tudo cheio de nada, que transformam a escola numa farsa e, frequentemente, os professores em animadores, para não dizer outra coisa, de um paupérrimo espetáculo!

    Gostar

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.