Este Mês, No JL/Educação

Uma fuga à actualidade, talvez por cansaço com a falta de memória das gentes.

História como Cidadania

Há dias, aulas, mesmo semanas, em que me dá um especial prazer ser professor de História, mesmo em tempos de delírio burocrático, de instrumentalização do currículo por cliques académicas e de desvalorização da docência como profissão. Esses momentos repetem-se, felizmente, com alguma regularidade, quando abordo temas que podem e devem servir, de um modo especial, para que os alunos compreendam o mundo que os rodeia e o melhor consigam descodificar. Porque me devolvem o prazer de ensinar (sim, de ensinar, por anacrónico que digam que isso é), no que isso tem de mais pleno e gratificante.

Apesar do esquematismo dos programas, agravado com o reducionismo dos conteúdos que resultou das “aprendizagens essenciais” e da amputação da carga horária da disciplina de História, em especial no 3º ciclo do Ensino Básico, quem quiser libertar-se dessas amarras, tem à sua disposição temas que demonstram como a História (e em outra medida a Filosofia) é a área, por excelência, para abordar temas centrais para a formação dos futuros cidadãos. A História como campo de aprendizagem, estudo e debate do que é a Cidadania, para além das modas, sobrevive a custo, mas ainda nos permite oportunidades para a tal “descodificação” do mundo presente e do que (não) pode ou deve ser o futuro. E esse é um daqueles prazeres de que não abdico, reclamando a prática de uma autonomia que se conquista aula a aula e não se rende à lógica da representação burocrática.

Momentos em que para além dos conteúdos programáticos “essenciais” é importante transmitir aos alunos o contexto específico de cada época, algo indispensável para que percebam que as mesmas palavras não designam o mesmo ao longo do tempo ou através das sociedades. Que algo que foi seminal ou percursor, esteve longe de ser perfeito e que foi necessária uma longa evolução, para atingir uma versão melhor do que a original.

No 6º ano, apesar dos alunos ainda serem muito jovens, surge a primeira possibilidade de os fazer conhecer formas de organização política como o absolutismo e o liberalismo, as manifestas distorções de um e as limitações do outro. É sempre interessante explicar como aqueles que consideramos os fundadores de uma ideologia igualitária e libertadora, conseguiam sê-lo enquanto aceitavam e praticavam a escravatura, a completa exclusão das mulheres da vida pública e a limitação dos direitos de cidadania dos mais pobres. E demonstrar-lhes como podemos ter uma monarquia constitucional liberal ou uma república autoritária e ditatorial. Que as oposições maniqueístas simplificadoras nos podem induzir em erro. Que a ética não é apenas republicana. Que as eleições podem ter muitos e desvairados formatos, tudo dependendo do uso que lhes é dado. Que a representação popular pode assumir diferentes configurações, algumas delas profundamente atentatórias dos direitos individuais na sua prática.

Jornal de Letras/Educação, 26 de Janeiro de 2022

Claro que quando tudo se equipara e relativiza, considerando que há saberes que “não interessam aos alunos”, estamos a desprezar o dever do professor despertar nos alunos o interesse pelo que é relevante para a sua formação, mesmo se num dado momento isso não lhes possa aparecer como evidente. Como qualquer medicamento que nem sempre tem o sabor mais doce, o remédio para a ignorância pode surgir como desinteressante ou algo que exige um esforço indesejado.

O actual predomínio das teses utilitaristas da Educação (como algo que serve para preparar os indivíduos para o mercado de trabalho ou pouco mais) ou de concepções que centralizam o ensino/aprendizagem num alegado “Interesse dos alunos”, no sentido do que lhes surge como mais atractivo, conduziu ao empobrecimento do currículo, cada vez mais fragmentado e desarticulado.

Do que adianta um trimestre ou mesmo semestre de “Cidadania”, abordada numa perspectiva estruturalista, se fizemos desaparecer quase por completo do programa de História do 7º ano a descrição e análise do carácter inovador, mas incompleto, da democracia ateniense? Ou da forma como essa democracia podia ser esclavagista, misógina e imperialista? E porque se voltou a considerar desnecessário fazer a comparação entre Atenas e Esparta ou abordar a República em Roma, concentrando o que é “essencial” apenas no Império, como se a sua existência não fosse o resultado de uma evolução de séculos? Porque se considera “enciclopédico” explicar como evoluiu o conceito de cidadania em Roma, se muitos alunos não voltarão ao tema até ao fim da escolaridade obrigatória?

E o mesmo é válido para o 8º ano e o tema das Revoluções Liberais que, por causa da sucessiva redução de horas para História, ficou empurrado quase para final do ano lectivo, sendo dado em correria, depois de se abordar a Revolução Industrial. Que o programa é longo? Depende do tempo que tivermos para o tratar devidamente. Se espartilhamos a sua abordagem em semestres ou em duas aulas semanais de 45-50 minutos (ou num bloco de 90), é natural que tudo tenha de ficar pela superfície, inviabilizando a compreensão e a ancoragem das aprendizagens. Como ter tempo para demonstrar que a Constituição Americana (e a Bill of Rigts), que ainda hoje é idolatrada além-Atlântico como exemplo maior da defesa da liberdade, foi escrita por esclavagistas que defendiam o direito ao voto com base na riqueza? Como explicar que a Revolução Francesa não se reduz à tomada da Bastilha, à execução de Luís XVI e à ascensão de Napoleão, com umas pitadas de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sendo um processo complexo onde as virtudes de alguns princípios se concretizaram em momentos de terror e fanatismo?

O programa de História do 9º ano, correspondente ao século XX e ao início do século XXI (a quem quase ninguém consegue chegar), deveria ser abordado sem ser em formato digest, para que se percebesse a dimensão das tragédias que o marcaram, quantas delas em nome de concepções truncadas e manipuladoras do “bem comum” ou doi “interesse nacional” (como no fascismo e nazismo), assim como o tempo dos maiores avanços científicos e tecnológicos para a Humanidade foi o mesmo da massificação da destruição e mortandade, com a banalização dos genocídios. A História do século XX é essencial para a compreensão do presente, do que foi a luta pelos direitos humanos em regimes tidos como os mais avançados em termos democráticos (a luta pelos direitos civis nos E.U.A.) e o quase impensável preço em vidas humanas de projectos que anunciavam a instalação de utopias radiantes, em que todos viveriam em paz e harmonia, sem exploração do homem pelo homem (U.R.S.S., China).

Sim, é um terreno delicado e propenso a abordagens marcadas por preconceitos ou alinhamentos ideológicos, mas esse é um risco a correr se queremos que os nossos alunos acedam a conhecimentos nucleares para a compreensão do mundo que os rodeia. Como descodificar narrativas que manipulam conceitos e as próprias palavras se não soubermos como foi a sua formação e evolução? Como preparar os futuros cidadãos com abordagens descontextualizadas e por vezes anedóticas, como as que andam a fazer a existência de uma disciplina que faz lembrar, na sua simetria propagandística, a velha Educação Moral e Cívica do 1º ciclo de estudos do Ensino Liceal (Decreto-lei n.º 27.084 de 14 de Outubro de 1936) dos primórdios do Estado Novo? Dir-me-ão que o conteúdo é muito diferente, mas é difícil não reconhecer que o desejo de formar um “novo homem” na base de uma hora semanal de doutrinação nos valores do regime dominante num dado momento histórico, não é muito diverso.

A progressiva amputação das horas para leccionar a disciplina de História, com as consequentes queixas sobre a alegada extensão do programa, justificou a eliminação de vários conteúdos no âmbito da definição das “aprendizagens essenciais”. Essa amputação (de 9 para 6-7 tempos semanais, no conjunto dos anos do 3º ciclo) foi muito grave para a formação dos alunos em matérias relevantes para o seu conhecimento do funcionamento da sociedade e do sistema político, democrático e liberal, em que vivemos, como se foi formando e aperfeiçoando. Democracia que se foi consolidando, repelindo graves ameaças ao longo do século XX, algumas de regresso no século XXI, de um modo inesperado apenas para quem despreza o papel da Memória e considera anacrónica a aprendizagem do passado, porque é útil fazer passar narrativas ficcionadas sem o devido escrutínio.

A História passou a ser um alvo preferencial dos redutores do currículo, porque a Memória que ela nos devolve é incómoda para quem quer elevar o transitório a valor universal.

7 opiniões sobre “Este Mês, No JL/Educação

  1. Subscrevo inteiramente as tuas palavras Paulo.
    Tenho é muita pena que quem está na APH e devia defender a disciplina, tenha contribuído para esta “terraplanagem”. Em nome de quê?
    Da redução do seu horário para poder dedicar-se a outros projetos (manuais e formações)?
    De ter sido contratado para elaborar o programa daquela pseudo disciplina que não há em lado nenhum “História, Cultura e Democracias”?
    Ainda por cima Cidadania e Desenvolvimento é lecionada, na grande maioria das escolas, por professores que não são de História nem de Geografia.
    CD como disciplina opcional e devolvam-nos as horas roubadas que bem fazem falta à História e à Geografia.
    Aliás, basta uma confrontação dos temas de CD com as várias disciplinas do curriculum para ver que grande parte do que ali se aborda já era/é feito em várias disciplinas.

    Gostar

    1. Grata pelas suas palavras.
      Esta foi uma dessas semanas, em que me senti super satisfeita por ser professora de História, por ouvir os alunos dizer que ” a disciplina é muito importante…que deveria ter mais tempos semanais”.

      Gostar

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.