Os textos são entregues com mais de uma semana de antecedência, portanto, não é sobre a reabertura das escolas, vacinação, etc. Ainda não encontrei a edição em papel, portanto, segue a original, versão pré-AO, com as notas de rodapé que desaparecem quase sempre na versão impressa.
Incapacidades Digitais
Quando 2021 se aproxima do fim e se fala em nova vaga pandémica, cortesia da nova variante Ómicron, volta a ser necessário considerar a hipótese, certamente indesejável, de regressar algum tempo ao ensino não-presencial ou, pelo menos, a uma modalidade híbrida, combinando aulas presenciais com trabalho (síncrono ou assíncrono) remoto.
Para que isso aconteça perturbando o mínimo possível as aprendizagens dos alunos e a equidade do acesso destes às tarefas a desenvolver, é importante que se perceba até que ponto avançámos na identificação das dificuldades verificadas nos períodos anteriores de recurso ao ensino não-presencial.
Isso passa pela disponibilização do material tecnológico e das condições para o seu uso pelos alunos, mas de igual forma pelo conhecimento das competências digitais dos docentes para desenvolverem um trabalho produtivo e consequente. Esse conhecimento deve procurar ser objectivo e servir para a adopção de medidas eficazes e a definição de políticas com alicerces na realidade existente e não obedecer a critérios de oportunidade política ou interesses particulares que resultem da necessidade de encontrar necessidades onde não existem para justificar decisões pré-definidas.
Após quase dois anos civis de pandemia que atravessam três anos lectivos, continuamos a padecer do mesmo tipo de insuficiências que se detectavam nos primeiros meses de 2020. A escala pode ser menor, mas a sua natureza não mudou. Ou seja, não se pode falar de modo algum numa “Escola Digital” quando se adia o equipamento das escolas, alunos e professores para um ensino que integre um componente digital de qualidade e extensível a todos numa situação de alguma equidade. Não chega ter ido comprar à pressa uns “kits tecnológicos” low cost para acudir à urgência inicial. Deu para resolver tardiamente as necessidades mais básicas, mas está longe do indispensável para que as escolas estejam equipadas para um ensino remoto ou híbrido que não volte a depender muito dos meios privados das famílias dos alunos ou dos próprios docentes. Com o mês de Dezembro já avançado, foi notícia que estavam em distribuição mais 600.000 computadores para os alunos do ensino obrigatório (Jornal de Notícias, 7 de Dezembro de 2021), mas a verdade é que muito poucos terão chegado às mãos dos necessitados, caso em Janeiro se torne prudente o recurso a mais de uma semana sem aulas presenciais. A lógica do custo mínimo, o que acaba por ser, a médio prazo, uma opção errada.
Se para os alunos quase tudo tem tardado, para as escolas nem sequer chegou o que foi sendo repetidamente anunciado. A banda larga continua a ser minguada, tornando impraticável o desenvolvimento de tarefas em sala de aula com recurso síncrono a 20-25 equipamentos individuais. Mesmo as salas equipadas com computadores em tempos mais ou menos remotos não são, nem de muito longe, em quantidade e qualidade que permitam um trabalho consequente de ambientação dos alunos às plataformas mais comuns para o desenvolvimento das suas competências digitais ou para a realização de tarefas das diferentes disciplinas. No início de 2021 falou-se muito no Plano de Transição Digital para as Escolas que, entre outras coisas, prometia “conectividade móvel gratuita para alunos e professores”, mas até este momento isso não passa de uma miragem.
Exemplifico com uma situação concreta: lecciono numa escola com mais de 600 alunos que dispõe de apenas duas salas com computadores, sendo que as minhas turmas têm 28 alunos e a sala com mais equipamentos tem 14, mas que não conseguem estar online em simultâneo para a realização de um quizz. Isto se as salas estiverem disponíveis e não ocupadas nas aulas de T.I.C., uma disciplina que tem tido imensos problemas ao nível do recrutamento de docentes e que, por isso mesmo, nem sempre pode funcionar (nem a sua carga horária permite) como apoio ao trabalho dos alunos nas restantes disciplinas, nomeadamente na criação de e-portefolios.
Entretanto, foi apresentado publicamente como sendo um “estudo”, aquilo que, na sua origem, se limitou a ser o resultado das respostas dos docentes um inquérito europeu sobre “Capacitação Digital” no âmbito do projecto (de 2017, sendo anterior à pandemia) The European Framework for the Digital Competence of Educators (DigCompEdu) [i]. O questionário designado como Check-In procurava fazer uma aferição do que os próprios docentes consideravam ser as suas competências digitais em seis áreas, mas prestava-se a equívocos no modo como foi divulgado, pois não era claramente perceptível que inquiria o que os docentes conseguiriam fazer, caso dispusessem de meios para tal, pois apresentava-se como “um questionário de autorreflexão” e muitos respondentes fizeram-no a pensar no seu quotidiano concreto e não num cenário ideal.
Na introdução às secções B a G do dito questionário, podia ler-se “suponha que tem as condições adequadas no seu contexto de trabalho (disponibilidade de equipamentos eletrónicos e acesso à internet para professor e alunos) e selecione, para cada uma das afirmações, a opção que melhor reflete a prática que sente ser capaz de realizar”, mas quase tod@s @s colegas com quem falei respondeu sem atender a esse esclarecimento. Eu próprio comecei a fazer o questionário até notar nesse detalhe, sendo obrigado a reiniciar o processo de respostas de forma a corresponder ao que seria “capaz de realizar” e não apenas ao que é “possível realizar”. Em muitas questões, a diferença na pontuação final obtida estava na escolha entre as opções em que se considerava fazer “regularmente” ou “sistematicamente” determinada tarefa. Essa diferença remete mais para a frequência com que se faz algo e não necessariamente para a competência para o fazer, pelo que parte das conclusões extraídas desses resultados podem estar a basear-se num equívoco.
Isso não impediu, contudo, que a equipa da Universidade de Aveiro que tratou os dados disponibilizados pelo Ministério da Educação considerasse que tinha feito “um estudo pioneiro”, avançando com conclusões que “apontam para um nível de proficiência médio global correspondente ao nível intermédio B1, que se pode considerar baixo” [ii]. Lendo-se o estudo em si mesmo (Margarida Lucas e Pedro Bem-haja, Estudo sobre o nível de competências digitais dos docentes do ensino básico e secundário dos Agrupamentos de Escolas e das Escolas Não Agrupadas da rede pública de Portugal Continental. Aveiro: Junho de 2021), encontram-se muitos dados interessantes, mas algumas conclusões que parecem algo apressadas como aquelas sobre os grupos de recrutamento mais ou menos proficientes em competências digitais. Por exemplo, “conclui-se, ainda, haver uma heterogeneidade nos níveis de proficiência entre grupos de recrutamento, sendo os grupos 110, 260 e 310 aqueles cujos docentes apresentam níveis mais baixos de proficiência. Já os docentes que apresentam níveis de proficiência mais elevados pertencem aos grupos de recrutamento 290, 350, 540 e 550”, não se explicando as especificidades de alguns desses grupos ou sequer a sua relevância na amostra. O grupo 110 (1º ciclo) corresponde às respostas de mais de 20.200 docentes (mais de 20% da amostra), mas o grupo 310 (Latim e Grego) corresponde apenas às de 26 docentes; por outro lado, o grupo 550 (com quase 3000 respostas) corresponde aos docentes de Informática, sendo de espantar se não estivessem entre os mais competentes no uso de ferramentas digitais. Curioso é que só encontremos 54% dos docentes deste grupo nos dois níveis mais elevados de proficiência digital.
E não poderia faltar o habitual apontar de dedo aos mais velhos, afirmando-se que “parece haver um aumento da proporção de docentes nos níveis mais baixos de proficiência à medida que a faixa etária sobe”, o que é uma evidência natural, mesmo se nem sempre facilmente comprovável: dos 25 aos 29 anos há 7% dos inquiridos nos níveis mais elevados de proficiência, mas o valor desce apenas para 6% acima dos 60 anos e tem os valores mais altos entre os 40 e os 49 (10%) e os 50 e os 59 anos (9%).
Se todos estes elementos podem ser úteis para o conhecimento da realidade, seria importante que a recolha da informação fosse feita de um modo mais claro e o seu tratamento menos ditado por agendas políticas. O conhecimento não é neutro, mas poderia estar menos comprometido com os interesses dominantes dos dias que acabam por passar.
[i] Disponível em https://publications.jrc.ec.europa.eu/repository/handle/JRC107466 (consultado em 20 de Dezembro de 2021)
[ii] Notícia disponível em https://www.ua.pt/pt/noticias/9/72620?fbclid=IwAR1dT4yYv4tTF5Mwcb8r-VrUzM616HEpilBroPJmcdY6hlgVtajVO24H0QQ (consultada em 20 de Dezembro de 2021).
Estes tipos pensavam que a máquina substituiria o homem, era? E logo na educação!
Tentem educar o vosso filho só com um telemóvel! Sai uma rica prenda.
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