Novo Dicionário Educacional – Letra T

Transversalidade – qualidade necessária e indispensável para que qualquer ideia, projecto ou prática possa ser considerada pedagogicamente inovadora, em especial para quem olha da esquerda, mas que também colhe muitas simpatias em alguns especialistas da direita mais fofinha e católica a norte. Embora as origens do conceito em si possam ser encontradas em autores do século XIX ou do início do século XX, sempre que é invocada, a transversalidade parece ser algo próprio do futuro risonho, do século XXI, muito em particular desde que se começou a pensar na passagem do milénio ali por meados dos anos 80 de Novecentos. Em Portugal, a “literatura” começou por falar muito em interdisciplinaridade (verbete na letra I), mas mais recentemente tem-se verificado uma preferência clara por tudo o que é transversal. Uma das primeiras concretizações de uma abordagem transversal do currículo, na altura ainda designada como interdisciplinar, ficou a dever-se à famosa “Àrea-Escola” (definida como “área curricular não disciplinar” no artigo 6º do decreto-lei 286/89 e institucionalizada pelo despacho 142/ME/90 do primeiro governo maioritário de Cavaco Silva, ministro Roberto Carneiro, secretário de Estado da Reforma Educativa, José Pedro d’Orey Cunha e Menezes), à qual a Porto Editora dedicou em 1993 o seu primeiro número da “Colecção Educação”, livrinho (autoria de Manuela Monteiro e Irene Queirós) que faria parte integrante da “Biblioteca de Apoio à Reforma do Sistema Educativo” com carimbo específico que acrescentava o estribilho “Em cada escola fazer a Reforma”. A abrir, uma introdução modelar e lapidar com citações do grande pedagogo Boaventura Sousa Santos no início e fim (pp. 7-8), na qual se parafraseava o grande mentor com passagens como esta: “a Área-Escola representa a oportunidade de operacionalizar a interdisciplinaridade de uma forma generalizada correspondendo ao paradigma emergente do conhecimento científico. a organização do currículo por disciplinas conduz a um conhecimento fragmentado, espartilhado, constituído por saberes herméticos, estanques, que produzem, na maior parte dos casos, uma visão deturpada do real. A Área-Escola ao concretizar-se através do desenvolvimento de projectos interdisciplinares contribui para a construção de um novo conceito de saber: um saber amplo, integrado, descompartimentado… total.” E continua assim, nesta forma de escrever e falar que quase todos nos vimos obrigados a aprender (o verbete “Eduquês” promete sumo na letra E) na década de 90 para sobreviver ao novo paradigma (verbete já produzido na letra P) emergente que nos submergeu.

A transversalidade das abordagens de certos temas tornou-se regra em diversos projectos que passaram a distinguir-se pela designação “Educação para… [qualquer coisa]” e nessa forma sobreviveu, pujante, até hoje, desde a chamada “Educação para o Empreendedorismo”, conceito patusco dos últimos anos em país de empreendedores encostados ao subsídio, até à omnipresente preocupação com a “Educação para a Cidadania” de que se fala agora como se não fosse assunto com barbas de molho. Voltemos à mesma colecção da editora acima referida e encontraremos no ano de 2000 o seu 13º volume dedicado exactamente a Educar para a Cidadania – Motivações, Princípios e Metodologias. Chegando a páginas 47-48 temos que ao autor (António Manuel da Fonseca) parece “fundamental que a educação para os valores da cidadania e da democracia deixe de ser um objecto educacional e se transforme num processo pedagógico em si mesmo, assumido e concretizado por todos os agentes implicados no acto educativo. Para que isso suceda, torna-se indispensável abandonar a lógica da disciplina específica (…) e incrementar a disseminação de conteúdos específicos de cidadania no currículo regular, responsabilizando cada professor, designadamente, pela respectiva tradução em termos de prática pedagógica da sua área curricular”. Ufa. E assim foi que se passou também, por exemplo, com a projectada (à esquerda) e temida (à direita) Educação Sexual que se transformou em Educação para a Saúde já na primeira década desde milénio. Ou seja, em quase nada porque raramente as transversalidades são mais do que um chavão para meter na gaveta qualquer coisa que não se sabe bem como “operacionalizar”, muito mais se implicar custos sem ser com grupos de trabalho (terá verbete na letra G) destinados a estudar o tema, com especialistas (a letra E parece vir a ser a de verbetes mais numerosos e suculentos) recrutados no círculo de conhecimentos e amizades do pessoal político em trânsito pelo ME. Ia-me esquecendo… o habitat natural das transversalidades foi, enquanto durou, o Instituto de Inovação Educacional, albergue generoso onde se podiam encontrar de uma Ana Benavente a um Valter Lemos. Todos diferentes, todos iguais. Ou vice-versa.

Não me admira, portanto, que por estes dias de reciclagem do velho em forma de novo remendado a questão da transversalidade esteja de volta, a par do apelo a práticas inovadoras, o que costuma traduzir-se em fazer nas tais disciplinas arcaicas e estanques as abordagens que para serem implementadas de uma forma realmente transversal implicariam práticas verdadeiramente inovadoras e que desagradariam, conforme os temas, a atenienses ou espartanos. E ainda provocariam parecer ou estudo do CNE a avisar para os milhões que se gastariam.

Em termos geográficos, Portugal é uma espécie de placa giratória atlântica em termos de transversalidades. Importou o conceito nas suas diversas variantes, em estadias, leituras, estágios e teses, principalmente de Inglaterra e tem-se esmerado em exportá-lo principalmente para o Brasil, imenso Portugal mestiço de ideias e corpos, criado historicamente a partir de um outro tipo de plano, nomeadamente o das horizontalidades, missionárias ou outras. O que é uma inversão curiosa daquele outro comércio, vetusto, em que transportávamos o ouro brasileiro para os portos ingleses em troca de panos para nos engalanarmos e encobrirmos nossas vergonhas.

Tudo isto está ligado. Em forma de eterno retorno, não revertido. Transversalmente.

Diario

Não é Verdade!

Mas mesmo que fosse, seria dinheiro bem empregado. Só que as contas não se fazem assim, os valores envolvidos não são aqueles, mas lá vamos nós cantando e fingindo que as coisas são mesmo assim, ou seja, que tudo isto levaria a um aumento de quase 20% no orçamento do ME. Não deixa de ser curioso que menos de 16.000 turmas adicionais (e duvido que assim fosse, porque as médias são o que são e usam-se conforme dá mais jeito) levassem à necessidade de contratar quase 28.000 professores e 570 assistentes operacionais. Nada como criar uma onda de alarme financeiro em torno de tudo isto. Pessoalmente, acho que reduzir o número máximo de alunos no 1º ciclo para 22 e a partir do 2º ciclo para 26 seria já muito bom e, assim por alto, acho que a coisa se ficaria pelos 200 milhões de euros, dos 200 milhões de euros melhor aplicados em Portugal na última década. Em prol dos alunos, que é o pretexto normalmente usado pelos políticos para justificarem tanto disparate. E desta vez seria por uma boa causa.

Pub3Abr16

Público, 3 de Abril de 2016