Competências Básicas – 2

Sempre adorei quem lança anátemas enormes sobre o trabalho alheio. A partir de fora, mas também de dentro. Do género… “mas como é possível que ele esteja no [preencher a gosto] ano e não saiba o que é um [adjetivo/pronome/advérbio/modo verbal/etc]”.

Vamos lá a ver… eu sou um professor de História emprestado ao Português de 2º ciclo em part-time, coisa que exerço há um quarto de século com a dedicação que cada turma me merece e o respeito qb pelas normas em vigor que de vez em quando mudam, mudando muito mais do que seria razoável em matérias que eu acho que deveriam ser estáveis o suficiente para um aluno não observar 2 ou 3 piruetas no programa da sua língua materna (ou emprestada) nos 9 anos de escolaridade básica. Mas tenho opinião, dois olhos com óculos para a miopia e uma atitude relativamente conservadora em relação – como é sabido e admitido por mim – a algumas coisas. Mas que faz o que pode, dentro do que lhe deixam.

E, por estranho que pareça a gente informada em fóruns de discussão sobre a decadência do ensino em Portugal (tertúlia com mais ou menos 150 anos), há pouco que se consiga fazer sem ser quebrando regras e controles burocráticos muito fortes para colocar a petizada a gramaticar de forma decente. Aliás, por vezes nem podemos dizer Gramática porque parece mal e temos de dizer Conhecimento Explícito da Língua ou outras designações adequadamente sofisticadas e parvas para o que seria fácil de perceber se não existissem complexos de merda na cabeça de algumas mentes muito académicas.

Mas voltemos à Gramática do Português (pode ser assim sem que ninguém se ofenda pf?) e ao meu 2º ciclo, que é ali aquela coisa entalada entre uma e outra. Mas o que vou escrever pode aplicar-se a outros ciclos e circos, sendo que os ursos são os que entram com livro de ponto ou senha de utilizador para o sumário tecnológico). A Gramática, dizem as matrizes do sacrossanto ministério, soprado por especialistas nas coisas da linguagem, deve ter um peso de 20% na avaliação (que agora se quer mais formativa, fofinhusca e não entediante) da disciplina, sendo que é assim que se acha bem, devendo os alunos saber, antes de mais (o que nem está errado, as a certa altura já o deveriam saber sem ser apenas na base dos emojis), ler e perceber alguma coisa do que leram, manifestando isso em provas finais (más) ou de aferição (boas) através de um certo lote de cruzinhas e tracinhos, mais de uns textos com contagem de palavras que os alunos vão apontando religiosamente no fim de cada linha, considerando a contabilidade certa mais importante do que a coerência do texto em si. Se é para ter 150 palavras e já lá estão 153 (“o título conta, professor?”), acaba-se logo ali com um FIM em maiúsculas bem visíveis.

O que significa que um aluno pode passar de ano com zero conhecimentos de gramática enquanto tal, sem saber conjugar um verbo no conjuntivo (que tédio!), sem distinguir uma preposição do esfíncter ou um advérbio do esternocleidomastoideo. Muito menos tem de preocupar-se com o complemento oblíquo que, em abono da verdade, mais parece uma coisa de álgebra. Ou com o vocativo ou o predicativo do sujeito. Aliás, até pode deixar toda essa parte das provas, fosse das finais (as más) ou das de aferição (as boas), que lhe basta ler, entender qualquer coisa, escrever um texto qb e ninguém lhe pode tocar. O que até tem lógica porque a Gramática é uma espécie de arcobotante da catedral do tédio que é a escola.

E o aluno pode seguir por ali acima, manco de conhecimentos, desde que tenha a competência de falar de forma inteligível e perceber o básico de umas histórias que se vendem como pãezinhos quentes às bibliotecas escolares à conta das regras do PNL e de uma pretensiosa Educação Literária que é mais negócio do que literatura, mais adaptação manhosa do que obra original, mais carimbo do que sustância. E nem vou agora pelo caminho do vocabulário perdido em geração incerta.

Claro que o podemos chumbar, mas isso é estarmos a adoptar uma arcaica cultura da retenção, quase certamente a discriminar alguém que vai ser prisioneiro do insucesso e a não encarar o ensino da língua de uma forma dinâmica e/ou apapagueada, como aquilo do aluno conseguir ler palavras ao minuto mesmo que as não entenda. E claro que termos de justificar porque não abordámos a coisa pelo lado da transversalidade que é como quem diz de cernelha, porque não fomos estimulantes o suficiente de modo a tornar os quantificadores tão atractivos quando o GTA San Andreas, uma copulativa tão fértil quanto uma cópula ou a voz passiva tão apaixonante quanto aquela senhora que aparece de gatas naquele vídeo do tubo vermelho (esta alguém terá de googlar para perceber 🙂 ).

A sério, eu podia resumir isto assim: o ensino dito “moderno”, progressista, assente em conceitos muito à frente e promotor do sucesso para não criar traumas e baixar estimas, criou as condições ideais para que (entre outras vítimas) a Gramática seja letra defunta. Não se queixem. É assim, a menos que algum professor chato decida que no 3º período o peso da dita cuja passa para 40% e que se lixem as inspecções, verificações e outras castrações.

E nem me puxem pela acentuação e pontuação.

Gluteos

Competências Básicas

Não sei bem como fica a minha disposição quando leio certas e determinadas coisas na imprensa ou as ouço/vejo em rádios ou televisões. A maior parte das vezes a reacção é um misto de enfartanço e desânimo, porque parece que os estúpidos somos sempre nós e os senhores doutores dos estudos e das opiniões é que sabem tudo sobre a Educação e as escolas, muito em particular sobre a culpa dos professores no mau estado daquelas e na degradação das aprendizagens. A coisa agrava-se quando leio especialistas a falar de competências (falta-me fazer algo sobre o tema no meu Novo Dicionário Educacional), básicas, nucleares ou essenciais, mais operacionalizações e metas.

Porque deparo-me com a impossibilidade concreta de contrariar algumas situações que são gritantes quanto ao défice que representam (seja de competências, seja de conhecimentos), mas cujos protagonistas são protegidos pelo direito ao sucesso.

Exemplo 1: perguntem aos vossos alunos, em especial até aos 15 anos, se sabem ver as horas num relógio analógico, vulgo “com aquelas coisas compridas” a que os velhos chamam ponteiros. Hoje confirmei que cerca de metade dos meus alunos de 7º ano (dos que não tiveram vergonha de responder) não conseguem ver as horas no relógio que está na sala de aula e que essa é a razão pela qual me perguntam tanta vez que horas são ou quantos minutos faltam para sair. Os relógios, distribuídos para facilitar a organização do tempo dos alunos em provas finais (más) e de aferição (boas), de pouco servem porque se muitos alunos conseguem perceber as horas, dizem que não conseguem perceber os minutos, pois cresceram já no mundo dos mostradores digitais. Quando perguntei se nunca lhes ensinaram isso no 1º ciclo ou se não precisam de saber ver um relógio para aprenderem as horas em Inglês ou Francês, responderam-me que não respondem a essas questões. E que não é por causa disso que deixam de ter positiva ou passar de ano. E têm razão. Mas se alguém der pela coisa em algum espaço mediático de referência, lá levaremos coma culpa em cima e aparecerão doutos opinadores a zurzir no lombo dos professores que nem ensinarem as horas sabem. O que não se questionam é se há alguma forma de ensinar algo que o aprendente considera inútil. Ou se os mecanismos de avaliação consideram esta ou outras matérias, que são bastante importantes do ponto de vista funcional para uma mente conservadora como a minha, relevantes para o (in)sucesso.

Exemplo 2: escrever o nome sem erros ortográficos. Quando os alunos se enganam na grafia das maiúsculas e da acentuação, com pretextos como o facto de no cartão de cidadão (sorry, sensibilidades bloquistas) não existirem maiúsculas e minúsculas nem acentos gráficos; ou que “o professor sabe que sou eu/como me chamo”. Porque tudo é relativo, acessório, inconsequente. Porque é chato. Um tédio. Porque não há qualquer tipo de brio em escrever bem o próprio nome. Há alguma “meta” para isso? Será aceitável que um aluno acabe o Ensino Básico sem saber grafar correctamente, na versão manuscrita, o seu próprio nome completo? A culpa é exactamente de quem? Eu sei a quem será atribuída por um bom punhado de miguéissousatavares e aprendizes. É dos corporativos dos professores das reles escolas públicas que só querem férias, privilégios e ganhar mais.

Os exemplos são anedóticos e caricaturais, esporádicos e localizados? Esperem um pouco e eu já vos explico como é possível fazer uma escolaridade básica de nove anos sem saber um pingo de gramática, para além de alguma aplicação funcional mínima. Isto é mais uma ladaínha de “velho do Restelo” que não sabe perceber que o futuro é das aprendizagens transversais e assinaturas digitais? Talvez, mas depois não se queixem.

calvin exams

Comparações

Já alguma vez fizeram comparações em contextos similares? Por exemplo, agarrarem numa turma de 28-30 alunos com muito insucesso e testar como funciona com menos alunos? Ou agarrar numa óptima turma de finlandeses e meterem-nos com 50% de portugueses pelo meio? Quanto ao resto, há estudos para tudo e mais alguma coisa. Porque eu posso ter 100% de sucesso com 30 alunos daqueles que sabem o que andam a fazer e muito menos se tiver 20 que só andam a apanhar bonés. Mas claro que eu é que estou errado, sou conservador e tenho de “mudar de paradigma” e de alterar a minha “dinâmica de sala de aula”.

Clown

Aprendem Cedo

A tal coisa da responsabilização. Há uma bola a ser pontapeada pelos corredores. Quando uma funcionária a tentar apanhar, alguém agarra nela e diz que não chutou, que a bola não é dele e vai entregar ao dono. O dono diz que não foi ele que chutou e que não a entrega porque não foi nada com ele. E foge. E corre. E ri-se no fim de tudo, até porque a maioria o apoia e quem passa finge que não vê, não ouve, não sabe, apenas quer sobreviver. E a quem reage é dito para não se chatear, que não vale a pena. É nestas alturas que gostaríamos de ter um danielsampaio ou um eduardosá ali à mão para resolver tudo com um sorriso, muita compreensão e uma dinâmica dialética que escapa aos zecos. A responsabilização é algo que se aprende cedo a não querer. Aprende-se pelos exemplos que escorregam, do topo para a base. Aprende-se que o sucesso passa por nunca se admitir falha, erro, culpa. Aprende-se que a responsabilidade é sempre dos outros. De quem se chateia e só serve para aborrecer quem se quer divertir um bocado, à bojarda.

kid-hit-in-head-with-ball

Ainda o Tédio

Não nego que os alunos o experimentem em muitas aulas. Ainda me lembro das minhas. E claro que há quem, nas condições actuais, se arraste em busca desesperada pelo final do dia. O que nos traz ao pouco falado – talvez porque tenhamos longo meia dúzia de escribas blasfemos, insurgentes ou muito observadores a zurzir que se não querem e tal, se ponham a andar – tédio docente, algo que se experimenta quando se tenta ensinar pela enésima vez um determinado conteúdo que até é importante – no âmbito do que se pode considerar importante em tempos de relativismo sobre o que serão aprendizagens relevantes – a um grupo de alunos maioritariamente constituído por entediados, repletos de um ennui existencial e contagiados por um spleen do tamanho de uma guinea worm antes de deitar a cabecinha de fora. Tentem motivar alunos para aprendizagens como a conjugação pronominal ou a relação entre comércio e educação no século XII quando eles sabem que o peso da responsabilidade pelo seu insucesso está todo do nosso lado e que somos nós, professores, a ter de justificar quando eles nos entregam uma ficha de avaliação quase toda em branco. Imaginem o tédio que nos cai em cima quando se estão a ensinar os meandros do regime constitucional liberal oitocentista a petizes de 11 anos que, na maior parte dos casos, têm duas ou três gerações de ascendentes a não compreender sequer o nosso regime parlamentar e a não perceber, aparentemente como qualquer assessor partidário que se preze, que as eleições legislativas não são eleições para primeiro-ministro e que “ganhar” não é o mesmo que ganhar um jogo de futebol. Imagino o que será ensinar determinados conteúdos da álgebra a quem desistiu, à partida, de se esforçar em Matemática, porque sabe que pode passar de ano com essa e mais outra “negativa” sem problemas e que, quando alguns inteligentes descobrem isso, colocam logo a culpa no “sistema público de ensino” e nos seus mais visíveis responsáveis, o rai’s parta dos professores. Imaginem o tédio de  ter de levar mais uma vez com o discurso – como ficou dito numa recente reunião de directores com o senhor secretário de estado – de que “todo o processo de avaliação requer registo, circulação e análise da informação” como se não soubessemos o que andamos a fazer e, de novo, com a lógica de fundamentar cada acto. É a chamada confiança nos professores e nas escolas. Ou de ter de aturar conversas sobre “mudanças de paradigma” ou “dinâmicas de sala de aula” como se estivéssemos de novo em profissionalização numa daquelas aulas entediantes com professores “do superior” que não percebiam um boi da coisa concreta que é dar aulas “no básico” (tive uma professora que durante quase todo o ano nem sabia que ciclo eu leccionava). Tal e qual uma sessão com os actuais responsáveis do ME, que parecem saídos directamente desse passado, embora falem em “tempos novos”. Tédio, sim, um tédio imenso que talvez só tenha uma pequena pausa a 26 de Maio porque – que tal admiti-lo sem qualquer problema? – andamos a navegar de cabotagem de feriado em feriado, quando dá para avistá-los no horizonte.

Simpson