O Texto Completo

(porque, apesar de não ser pago ao autor, está no espaço “exclusivo)

Uma questão de confiança

O Dia do Professor passou há dias, coincidente com o da República, cuja ética cada vez sentimos estar mais ausente da nossa vida pública. Em torno da data repetiram-se clamores de que existem alunos sem aulas porque não há professores. E aponta-se o dedo aos professores que se reformam, aos que adoecem, aos que não aceitam colocações precárias, aos que não existem, porque os cursos de formação inicial são pouco concorridos. Em regra, havendo um problema na área da Educação, a culpa é dos professores e da sua falta de formação (inicial, contínua, ou qualquer outra modalidade).

O que raramente se questiona com alguma profundidade é porque as coisas chegaram a este ponto quando ainda há poucos anos se declarava que existiam professores a mais no sistema e que, por razões demográficas, a redução do número de alunos implicava uma menor necessidade de docentes, pelo que até era aconselhável fazer uma filtragem dos candidatos à profissão. Porque falhou de forma tão estrondosa a prospectiva de um Ministério que colhe até à exaustão o mínimo detalhe estatístico da vida das escolas e da carreira dos professores e depois parece incapaz de prever as suas aposentações e tomar medidas para contrariar os seus efeitos.

Como é que um fenómeno que se veio a agravar nos últimos anos, em associação com a degradação das condições de trabalho que levaram muita gente a antecipar a aposentação ou a apostar em outros percursos profissionais, pedindo licenças sem vencimento, é agora caracterizado como “complexo” por um governante no cargo há quase seis anos? Ou se considere razoável atribuir parte das culpas pela escassez de docentes à campanha eleitoral para as autárquicas? Acaso a Direcção-Geral das Estatísticas da Educação e Ciência não dispõe de dados actualizados sobre a idade dos docentes, a evolução das baixas médicas prolongadas e do tempo médio para substituir os docentes dos vários grupos disciplinares ao longo do ano? Ou será que tudo isto nasce do desinteresse em reverter a lógica herdada do período da troika (e mesmo antes) em que a poupança está acima de qualquer outra prioridade, incluindo o tão evocado “interesse dos alunos”?

A proletarização da carreira docente e a precarização da situação dos contratados aumentou ao ponto de, agora, as dezenas de milhar de professores que ficavam de fora nos concursos de há uma década, terem desaparecido do radar das reservas de recrutamento de diversas zonas do país e de vários grupos de recrutamento. Como foi possível não perceber, por exemplo, que grupos como os de Português, Geografia ou Informática estavam prestes a ficar desertos de candidatos qualificados? Ou não perceber que obrigar as pessoas a deslocar-se dezenas e centenas de quilómetros por contratos de 30 dias é algo que dificilmente pode atrair seja quem for? Como querem uma pomposa “Educação Digital” se nem conseguem captar professores de Informática, mesmo se cada turma só tem 1 ou 2 aulas semanais da disciplina? Acham que isso é possível com horários com 10 e 11 turmas e salários contados ao dia e à hora? E não me venham com a semestralização, porque nesse caso há quem fique mesmo sem algumas disciplinas todo um semestre.

Como foi possível não perceber que o sistemático esforço para amesquinhar a maioria dos professores, enquanto publicamente se promovia uma corte de seguidores de uma pretensa “inovação” a que pouca gente reconhece mérito ou autoridade, mesmo que tenham cargos de destaque na hierarquia feudo-vassálica que caracteriza o actual modelo e gestão escolar, acabaria por desaguar numa situação como a que vivemos?

A solução não passa por medidas “extraordinárias”, se por isso se entender mais um processo similar aos que recentemente produziram mais opacidade, estranheza e confusão do que solucionaram problemas. As vinculações extraordinárias e reposicionamentos, enxertando o tradicional modelo de colocação de professores não trouxe nada de especialmente positivo. Mesmo o desaparecimento da chamada PACC ou da Bolsa de Contratação contrariou uma tendência que é verificável desde meados da década passada e que implica decisões com alguma coragem e visão e não apenas declarações redundantes e promessas vazias de substância.

A solução passa por garantir a existência, ao nível dos agrupamentos e escolas, de uma bolsa de professores contratados para todo o ano, que estejam disponíveis para substituir colegas da sua área disciplinar ao longo do ano, em vez de chegarem e partirem no espaço de um mês ou necessitarem de andar em duas ou três escolas distantes para completar o seu horário. No tempo que não estiverem em funções docentes efectivas podem coadjuvar colegas com turmas mais problemáticas. Uma bolsa deste tipo, para solucionar necessidades temporárias, mas recorrentes, poderá envolver alguns milhares de professores, mas dificilmente serão mais dos que andam agora pelo país de forma precária e desmoralizante e a estabilidade desta solução seria um ganho para todos, a começar pelos alunos.

Entretanto, também por estes dias, conheceu-se um estudo da Deco, no qual o sistema de ensino público surge como a instituição em que os portugueses mais confiam (6,9), inclusivamente acima do actual e tão consensual e afectivo Presidente da República (6,7/10). Este tipo de confiança coincide com o de variados estudos anteriores, sobre a confiança dispensada aos professores e contraria frontalmente diversas teses, umas vezes mascaradas como “opinião”, outras como se fosse matéria factual indesmentível, que amesquinham de forma sistemática o desempenho da classe docente portuguesa, em especial do sector público da Educação. A “opinião pública”, quando ouvida no seu conjunto e não apenas à porta de certas tertúlias, reconhece a qualidade do trabalho da Escola Pública, até porque a mesma se torna mais notória quando comparada com a de outras “instituições”. E deposita nela a sua confiança.

Só é pena que, quando as questões da Educação são debatidas, incluindo as que envolvem directamente a docência, tudo seja deixado a especialistas e políticos que revelam ter muito menor credibilidade do que os professores para o público em geral. Há quem não confie nos professores, mas cada vez mais fica demonstrado que esse é um problema nascido dos preconceitos de quem só os elogia quando deles se quer aproveitar.

16 opiniões sobre “O Texto Completo

  1. Os médicos fogem do SNS, os professores qualificados estão em vias de extinção. C’est la vie! Demagogia que instiga a inveja, pelos vistos, já não funciona. A população começa a acordar para a nova realidade. No money, no health, no education.

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  2. Caro Paulo Guinote: um grande, enorme elogio pela forma brilhante, sintética e absolutamente certeira como analisa este problema gigantesco. É a única, a única voz certeira, inteligente e rigorosamente verdadeira neste pântano em que transformaram as escolas a partir do topo da hierarquia.
    E esses imbecis (que até têm aqui um estudo que a qualquer especialista demoraria anos e milhões de euros a produzir) não aproveitam o que faz de borla: uma análise transparente ao que se passa na educação neste podre retângulo. Preferem derreter milhões em formações nos CFAE que não servem para nada a não ser para encher o bolso a amigos que detestam “dar aulas”.
    A si, Paulo Guinote, muito obrigado pelo serviço público, honesto, verdadeiro e inteligente que presta à Educação!

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  3. Muito bom , Paulo Guinote! Muito obrigada.
    Quanto aos políticos é uma constante náusea, ter que os encarar, nas notícias, comentários ou outras participações, sempre demagógicas!
    Pobre país!

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    1. Paulo, mais um excelente texto. Parabéns.
      Nota: os estudos de confiança NADA me dizem. Devem ser reconfortantes… para os missionários …
      A minha família não se alimenta de confiança.

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    2. Não são só demagógicas. São também plenas de má fé e, sobretudo, de ignorância.
      Nem o primeiro ministro e o seu ministro de educação percebem patavina de educação, nem os líderes da oposição percebem nada. Qualquer deles sabe mais de futebol do que de escola! E no entanto, nem desporto fazem.
      De escola, não sabem, nem querem saber.
      Basta ser professor para ver perfeitamente que não sabem. No entanto, enganam a opinião pública com cassetes por encomenda!

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  4. Parabéns, Paulo Guinote! Os jovens e familiares assistiram ao denegrir da profissão, na praça pública, e seguiram outros caminhos. Muitos acabarão por dar aulas mesmo sem estágio, pois há muitos anos já era assim.

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  5. Somos governados por idiotas. A ideia que as reformas dos professores deixam alunos sem aulas, equivale a dizer que os comboios da CP chegam atrasados por culpa dos relógios que não páram…

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  6. Excelente texto/reflexão.

    “… de quem só os elogia quando deles se quer aproveitar.” E há sempre quem aproveite “as migalhas”… Ou ache que “a esperança é a última a morrer”…

    E quanto a sindicatos que representem e defendam a classe…

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  7. Deixo à vossa consideração a seguinte hipótese: “Talvez por a profissão docente ser essencialmente feminina, as suas reivindicações e alertas sejam menorizados.”

    O trabalho realizado por mulheres ontinua a ser discriminado,sendo que estas reagem de uma forma menos evidente a situações de injustiça.

    Proposta: Denunciar ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos a continuidade na discriminação das mulheres, neste caso no ensino, pois só assim se entendem as malfeitorias movidas contra a classe docente, provocando a sua “asfixia”.

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  8. Tem razão.
    Segundo a ONU o sexismo, o racismo e o idadismo são os preconceitos mais pesados do mundo atual.
    Abusam e amesquinham porque não temos testículos e porque somos velhas!
    Vamos lá ver se os sindicatos têm tintins para levar a causa às instâncias internacionais! Afinal é de Direitos Humanos que se trata!

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