Sábado

A muito mediática falta de professores acabou por criar uma oportunidade singular para o ministro Costa e parte da sua corte interessada na domesticação dos docentes, a par da desqualificação académica da profissão e da proletarização das suas condições materiais. Não é de espantar que o governante se multiplique em intervenções que parecem ser feitas para tranquilizar a opinião pública mas que na verdade – não, isto não é uma teoria da conspiração e não passará assim tanto tempo que não se confirme muito do que escrevo, como no passado aconteceu – são destinadas a preparar essa opinião pública para aceitar uma transfiguração do que nas últimas décadas nos habituámos a qualificar como professores.

Eu explico, mas é necessário um contexto introdutório. Nos últimos 10-15 anos, pelo menos, tem existido uma pressão muito assinalável para que a oferta educativa no Ensino Secundário seja constituída por cursos de tipo “profissional(izante)”, sendo mesmo apresentada uma meta na ordem dos 50%. Ora, parte deste cursos tem uma organização curricular que escapa às disciplinas consideradas tradicionais, com variadas disciplinas com designações muito diversas e sem que exista um padrão definido das habilitações para as leccionar e nem sempre ajustado aos grupos de recrutamento existentes. O que tem levado ao recurso à contratação dos chamados “técnicos especializados”, com habilitações muito díspares, nem sempre de nível superior e muito menos com profissionalização, podendo ter ou não o chamado “certificado de aptidão profissional”. O que faz com que recebam pelo índice 151, na melhor das hipóteses.

Ao mesmo tempo, verificou-se a expansão do conceito de “Escola a Tempo Inteiro” para o 1º ciclo, assente na oferta de “Actividades de Enriquecimento Curricular” (AEC), asseguradas de múltiplas formas, mas quase sempre através do estabelecimento, pelas escolas, pelos municípios, até por associações de pais, de contratos com empresas ou pessoas individuais para as assegurar, não existindo durante muito tempo uma regulamentação clara das condições necessárias para assegurar estas actividades ou qual a remuneração base. No Verão de 2015, procurou fazer-se uma regulamentação mais rigorosa, mas muito ficou de fora relativamente às condições de trabalhos dos “técnicos” contratados para as AEC. Quando fossem profissionais habilitados para a docência, o tempo de serviço seria contabilizado para efeitos de concurso.

O que significa que na última década tivemos, pelos agrupamentos e escolas, um número crescente de “técnicos” contratados a exercer funções docentes ou equiparadas (no caso das AEC quando as habilitações dos “técnicos” o permitem). Milhares deles a leccionar disciplinas no Ensino Secundário. Uma parte deles (não se sabe ao certo) sem qualquer formação pedagógica ou académica que lhes permita concorrer para os grupos de recrutamento existentes. As estatísticas do Perfil do Docente não nos deixam saber de forma directa quantos são ou qual é a sua habilitação, bem como se torna impossível perceber qual o seu peso no conjunto dos docentes contratados.

Pelo que, é bem verdade que já existem milhares – não sabemos quantos – de “técnicos” a exercer funções docentes nas escolas, contratados de forma directa, de acordo com as “necessidades da oferta educativa”. Algo parecido poderá encontrar-se em vários ciclos do Ensino Básico relativamente a “projectos” e outras actividades, oficialmente de combate ao abandono e insucesso escolar. Em muitos casos com contratos feitos a partir dos municípios, em outros a partir das próprias escolas. Pagos pelas autarquias ou pelo POCH ou pelo POPH ou por outros programas alimentados com dinheiros comunitários.

Porque é necessária esta introdução, não tão breve assim?

Porque me parece que a “solução” para a tão repetida “escassez de professores” irá passar em boa parte por estender esta lógica de “qualificações alternativas” aos grupos disciplinares tradicionais, por colocar muitos dos tais “técnicos especializados” a completar horários com disciplinas “regulares”, tudo através de acertos directos feitos por escolas ou autarquias, ou escolas a mando das autarquias (em nome dos projetos inter/municipais de combate ou promoção a isto ou aquilo) ou das autarquias a pedido das escolas ou pura e simplesmente na base da criação de “necessidades” que existem de acordo com os interesses. Porque é estranho que não se abram vagas de quadro em grupos disciplinares para os quais existem candidatos em série no concurso externo, mas depois se verifiquem carências evidentes nesses grupos quando o ano lectivo está a arrancar. Parte pode ser explicada pelas baixas médicas, mas há por aqui mais do que isso.

Esta estratégia tem uma dupla utilidade (financeira e política) para os decisores políticos que vamos tendo na Educação: permite embaratecer a “despesa” com o pessoal docente (pagando anos seguidos fora da tabela da carreira a pessoal que até pode ter habilitações superiores, adiando o suprimento dos horários disponíveis várias semanas, recorrendo a “técnicos” pagos com verbas comunitárias) e ao mesmo tempo criar nesses profissionais uma atitude de despeito em relação aos professores integrados na carreira, esquecendo tantas vezes as agruras que também eles passaram ao longo dos tempos. Que se traduz, quantas vezes, na oposição às reivindicações e queixas dos “velhos” que consideram ter um lugar que poderia ser seu. E disponíveis para aceitar uma qualquer carreira, pois nenhuma têm. O que dá muito jeito a um governo de “contas certas” só para um lado.

Para além disso, por algumas pistas que se vão acumulando – que as organizações sindicais não parecem interessadas em divulgar ou em apresentar especial resistência, perante a “necessidade de recrutar mais professores”– tenho mais do que uma vaga sensação de que a reformulação das habilitações para a docência, são apenas um passo para que o recrutamento para a carreira – e não apenas para o exercício temporário da docência – passe a ser feito em moldes muito diversos dos actuais, seja em termos territoriais, seja em termos de requisitos académicos. Os centralismos locais apoiam esta pseudo “descentralização” que lhe atribuirá o poder não apenas de recrutar mas de criar as condições para a vinculação de um número crescente de “docentes”, de forma quase independente do seu currículo académico “afinal, quem garante que ter 18 ou mesmo 20 num curso significa que se vai ser um bom professor?” como tanto se lê e ouve por aí -, com o argumento de que é mais válida a sua “experiência no terreno”, certificada pel@ senhor@ director@ do teip que ainda pode dar pontos pela forma como @candidat@ demonstrou adesão ao “espírito de equipa” e ao “ambiente de inovação” existente em dado agrupamento em “contexto desafiante”.

O que aqui fica escrito não esgota o assunto ou sequer explicita mais o que se vai podendo observar por aí. Mas não é nenhuma teoria da conspiração. Aliás, se há coisa que a mim desgosta é ter tido, em várias ocasiões, razão antes do tempo e por isso ter levado muita cacetada, que mais tarde quase ninguém reconheceu.

É dar-lhes um par de anos e veremos a total desregulação do acesso à docência e à carreira docente, sem qualquer ganho para os alunos que não seja torná-los utentes de um serviço reduzido ao “essencial”, mas com muita diversidade e tempo ocupado em “actividades”.

7 opiniões sobre “Sábado

  1. Perdoe-me o Paulo mas nada há aqui de visionário. Trata-se de uma constatação da realidade. Vou arriscar algo mais futurista. Fala-se que 30% do pessoal docente será colocado localmente. Essa fatia será a prazo a elite dirigente, que regerá as escolas a mando dos municípios. Isso levará a uma verdadeira guerra de trincheiras e o clima coação acabará por levar muitos a preferirem ser funcionários municipais ou de uma qualquer CCDR.

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  2. DePaul University, Chicago Illinois
    Inquérito a alunos.
    Por que os jovens hoje em dia não querem ser professores?
    1 – porque a profissão não tem status.
    2 – porque os professores não têm autoridade na sala de aula, sendo constantemente desautorizados pelos pais e administradores escolares.
    3 – porque as próprias famílias não recomendam que sejam professores.
    4 – porque são mal remunerados.

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  3. Concordo. E em rampa de lançamento acelerado pelos próprios professores e pela sua atitude de “animador sociocultural” (nada contra os ditos, mas cada um nas suas funções). Sempre muito contentinhos a “desenvolver muitas atividades, projetos” e projetinhos, em vez de se focarem nos saberes específicos das suas disciplinas (se é que alguns sabem ou querem saber o que isso é…)

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